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FRAGMENTOS DE “O MOVIMENTO MODERNISTA”
DE MARIO DE ANDRADE

Extraídos de:

 

ANDRADE, Mario de. O Movimento modernista. Conferência lida no Salão de Conferências da Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, no dia 30 de abril de 1942.  Rio de Janeiro: Edições de Cultura da CEB, 1942. 81 p.  11,5x16 cm.  Impresso no Jornal do Commercio. “ Mario de Andrade “ Ex. bibl. Antonio Miranda.

Existem muitos livros, de acadêmicos e críticos literários, às centenas, sobre o Movimento Modernista. Reveladores, analíticos, e até um besteirol ou exercício tautológico, repetitivo, de citações de citações intermináveis.

No caso presente, está um dos criadores e ideólogos do movimento, ou seja, o testemunho participante. Não necessariamente o mais isento, mas certamente fundamental para entender os propósitos, as motivações, as intenções, a ideologia do processo, principalmente tratando-se de Mário de Andrade, considerado um dos líderes e pensadores mais bem equipados intelectualmente do grupo paulista da Semana de Arte Moderna de 1922. A  palestra preservada neste opúsculo,  surge já no ponto de amadurecimento do Modernismo, às vésperas das mudanças que levaram à Geração 45, que reconsiderou o soneto e a volta às raízes da literatura nacional e universal mais conservadora, ou “clássica”. A seguir, alguns trechos do depoimento do autor do célebre poema “Paulicéia desvairada”, pedra filosofal do movimento.   ANTONIO MIRANDA

 

A SEGUIR, os fragmentos:

          “Manisfestado especialmente pela arte, mas manchando também com violência os costumes sociais e políticos, o movimento modernista foi o prenunciador, o preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito nacional. A transformação do mundo com o enfraquecimento gradativo dos grandes impérios, com a prática europeia de novos ideais políticos, a rapidez dos transportes e mil e uma outras causas internacionais, bem como o desenvolvimento da consciência americana e brasileira, os progressos internos da técnica e da educação, impunham a criação de um espírito novo e exigiam a reverificação e mesmo a remodelação da Inteligência nacional.” (p. 14)

“que nos reunimos em torno da pintora Anita Malfatti e do escultor Victor Brecheret, tenhamos como que apenas servido de altifalantes de uma força universal e nacional muito mais complexa do que nós.” (p.15)

“Quem teve a ideia da Semana de Arte Moderna? Por mim não sei quem foi, nunca soube, só posso garantir que não fui eu.” (p.22)

“E eis que Graça Aranha, célebre, trazendo da Europa a sua “Estética da Vida”, vai a São Paulo, e procura nos conhecer e agrupar em torno de sua filosofia.(...) E alguém lançou a ideia de se fazer uma semana de arte moderna, com exposição de artes plásticas, concertos, leituras de livros e conferências explicativas? Foi o próprio Graça Aranha/ foi Di Cavalcanti?...  (p. 23)

“O modernismo, no Brasil, foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e de técnicas consequentes, foi uma revolta contra o que era a Inteligência nacional.”(p. 25)

“(...) o movimento modernista era nitidamente aristocrático. Pelo seu caráter de jogo arriscado, pelo seu espírito aventureiro ao extremo, pelo internacionalismo modernista, pelo seu nacionalismo embrabecido, pela gratuidade antipopular, pelo dogmatismo prepotente, era uma aristocracia do espírito.” (p. 28-29).  “(...) a burguesia protestou e vaiou.” (p. 30)

“Isolados do mundo ambiente, caçoados, evitados, achincalhados, malditos, ninguém não poder imaginar o delírio ingênuo de grandeza e convencimento pessoal com que reagimos.” (p.31) “E vivemos uns oito anos, até perto de 1930, na maior orgia intelectual que a história artística do país registra.” (p.34)

“(...) a efervescência que estava preparando 1930. A fundação do Partido Democrático, o ânimo político eruptivo que se apoderara de muitos intelectuais, sacudindo-nos para os extremismos de direita ou esquerda, baixara um malestar sobre as reuniões. Os democráticos foram se afastando. Por outro lado, o integralismo encontrava algumas simpatias entre  as pessoas da roda: e ainda estava sem vício, muito desinteressado, pra aceitar acomodações. Sem nenhuma publicidade, mas com firmeza, Dona Olivia Guedes Penteado soube terminar aos poucos o seu salão modenista.” (p. 38) “Porque, embora lançado inúmeros processos e ideias novas, o movimento modernista foi essencialmente destruidor. Até destruidor de nós mesmos, porque o pragmatismo das pesquisas sempre enfraqueceu a liberdade da criação.” (p. 39-40)
 “Doutrinários, na ebriez de mil e uma teorias, salvando o Brasil, inventando o mundo, na verdade tudo  consumíamos, e a nós mesmos, no cultivo amargo, quase delirante do prazer. / O movimento da Inteligência que representamos, na sua fase verdadeiramente “modernista”, não foi o fato das mudanças político-sociais posteriores a ele no Brasil. Foi essencialmente um preparador: o criador de um estado-de-espírito e de um sentimento de arrebentação. E se numerosos  dos intelectuais do movimento se dissolveram na política, se vários de nós participamos das reuniões iniciais do Partido Democrático, carece não esquecer que tanto esse como 1930 eram ainda destruição. Os movimentos espirituais precedem sempre as mudanças de ordem social.” (p. 42-43)

“O que caracteriza esta realidade que o movimento modernista impôs, é, a meu ver, a fusão de três princípios fundamentais: O direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional.” (p. 45)

“E o que nos igualava, por cima dos nossos despautérios individualistas, era justamente a organicidade de um espírito atualizado, que pesquisava já irrestritamente radicado à sua entidade coletiva nacional.” (p. 47)

“O estandarte mais colorido dessa radicação à pátria foi a pesquisa da “língua brasileira”. Mas foi talvez boato falso. Na verdade, apesar das aparências e da bulha que fazem agora certas santidades de última hora, nós estamos ainda atualmente tão escravos da gramática lusa como qualquer português. “ (p, 59-51)

“O espírito modernista reconheceu que si vivíamos já de nossa realidade brasileira, carecia reverificar nosso instrumento de trabalho para que nos expressássemos com identidade. Inventou-se do dia pra noite a fabulosíssima “língua brasileira”. Mas ainda era cedo; e a força dos elementos contrários, principalmente a ausência de órgãos científicos adequados, reduziu tudo a manifestações individuais.  E hoje, como normalidade da língua culta e escrita, estamos em situação inferior à de cem anos atrás. A ignorância pessoal de vários fez com que se anunciassem em suas primeiras obras, como padrões excelentes de brasileirismo estilístico. Era ainda o mesmo caso dos românticos: não se tratava duma superação da lei portuga, mas duma ignorância dela.” (p. 51-52)

“Talvez seja o atual, realmente, o primeiro movimento de independência da Inteligência brasileira, que a gente possa ter como legítimo e indiscutível. Já agora com todas as probabilidades de permanência. Até o Parnasianismo, até o Simbolismo, até o Impressionismo inicial de um Vila Lobos, o Brasil jamais pesquisou (como consciência coletiva, entenda-se), nos campos da criação estética. Não só importávamos técnicas e estéticas, como só as importávamos depois de certa estabilização na Europa, e a maioria das vezes já academizadas. Era ainda um completo fenômeno de colônia, imposto pela nossa escravização econômico-social. Pior que isso: esse espírito acadêmico não tendia para nenhuma libertação e para uma expressão própria.” (p. 63-64) “D´aí uma base desumana, prepotente e, meu Deus! Arianizante que, se prova o imperialismo dos que com ele dominavam, prova a sujeição dos que com ela eram dominados.” (p. 68-69)

“Já um autor escreveu, como conclusão condenatória, que “a estética do Modernismo ficou indefinível”... Pois essa é a melhor razão-de-ser do Modernismo! Ele não era uma estética, nem na Europa bem aqui. Era um estado de espírito revoltado e revolucionário que, se a nós nos atualizou, sistematizando como constância da Inteligência nacional o direito antiacadêmico da pesquisa estética e preparou o estado revolucionário das outras manifestações sociais do país, também fez isto mesmo no resto do mundo, profetizando estas guerras de que uma civilização nova nascerá.” (p. 68-69)

“Não tenho a mínima reserva em afirmar que toda a minha obra representa uma dedicação feliz a problemas do meu tempo e minha terra.” (p. 73)

“Deveríamos ter inundado a caducidade utilitária do nosso discurso, de maior angústia do tempo, de maior revolta contra a vida como está. Em vez: fomos quebrar vidros de janelas, discutir modas de passeio, ou cutucar os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade no culto. E si agora percorro a minha obra já numerosa e que representa uma vida trabalhada, não me vejo uma só vez pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando muito lhe fiz de longe umas caretas.” (p. 74-75)

“Nós éramos os filhos finais de uma civilização que se acabou, e é sabido que o cultivo delirante do prazer individual represa as forças dos homens sempre que uma idade morre.  E já mostrei como o movimento modernista foi destruidor. Muitos porém ultrapassamos essa fase destruidora, não nos deixamos ficar no seu espírito e igualamos nosso passo, embora um bocado tortuveante, ao das gerações mais novas.” (p. 78)

“Mas eis que chego a este paradoxo irrespirável: Tendo deformado toda a minha obra por um anti-individualismo dirigido e voluntarioso, toda a minha obra não é mais que um hiperindividualismo implacável. E é melancólico chegar assim no crepúsculo, sem contar com a solildariedade de si mesmo. “ (p. 78-79)

“Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição.” (p. 81) “ A liberdade não é um prêmio, é uma sanção. Que há-de vir.”  (p. 82)

 

 


 

 

 
 
 
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